Fiquei muito honrada, quando em Paris, em meados no ano passado, recebi o convite da jornalista Adeline Haverland, para falar sobre o meu trabalho na Garagem dos Cachos. Nosso desencontro foi engraçado, pois ela estava no Brasil e eu no país dela a passeio. Combinamos de conversar no meu retorno, e assim foi. Fiquei surpresa em constatar que a França tem uma revista, não apenas feminista, mas focada no empoderamento da mulher negra. É uma publicação onde as mulheres negras se sentem verdadeiramente representadas, mesmo nos editoriais de moda. E por isso fiquei tão empolgada em fazer parte disso tudo.
Quando recebi o pdf da Amina de janeiro, com a matéria pronta, fiquei ainda mais apaixonada pela revista e por outro lado entristecida por não ter nada que se compare aqui no Brasil. Uma revista feminina como esta, com certeza eu assinaria. Para quem ficou interessada em ler a matéria em português, segue abaixo a tradução impecável da Sally Ramos Gomes.
No Brasil, o orgulho de ser “Crespa”
Bicicletas presas na parede, tigelas do cão espalhadas pelos cantos do ambiente… Se não fosse o espelho no chão, nada indica que se trata de um salão de beleza popular tão apreciado pela comunidade afro-brasileira de São Paulo. Saindo da sala de estar ao fundo do local, Sabrinah Giampá nos recebe com um sorriso radiante. “Por aqui somos mestres na arte de improvisar”, justifica-se a jornalista, que também se converteu em cabeleireira especializada em cabelos de pessoas negras ou mestiças. Em sua garagem, que se transforma às tardes em salão, ela recebe mulheres da comunidade afro de todas as idades e classes sociais em busca de um lugar para serem paparicadas sem se sentirem estigmatizadas. Mesmo com mais de 50% da população brasileira sendo composta de afrodescendentes, os critérios de beleza no Brasil continuam muito influenciados pelas normas europeias. “Ser feminina por aqui é ter os cabelos longos, lisos e loiros, como os de Gisele Bundchen”, explica Sabrinah.
Alisamento – A única saída
Dessa forma, torna-se difícil para elas se adequarem aos padrões estabelecidos de beleza. “Durante mais de 30 anos, tive a impressão de ter que lutar contra a essência verdadeira do meu ser. Na minha família, ter cabelos crespos era sinônimo de falta de cuidados. Minha mãe considerava impensável sair com os cabelos naturais”. Penteados, produtos químicos, alisamento permanente… Sabrinah começa então a lutar contra os cabelos crespos em sua pré-adolescência. Quinze anos depois, de tanto usar formol e amônia para esconder seus cachos, seus cabelos ficaram danificados, sem vida e sem brilho. Num primeiro momento, foi um choque estético para a mestiça com a pele cor de mel: “Aos 30 anos, ao me olhar no espelho, eu me dizia que isso não era possível, eu não me reconhecia”.
Apesar disso, o mercado brasileiro de cosméticos oferece uma variedade muito limitada de produtos para mulheres afro. Nas inúmeras lojas de produtos de beleza, a seção de alisamento progressivo é freqüentemente a mais completa. A partir de 23 reais (6 euros), alguns xampus prometem um alisamento podendo durar até 6 meses. Por este valor, “não se pode confiar na composição duvidosa do produto”, afirma Adriana Terra, jornalista brasileira especializada em questões de beleza. Apesar do uso do formol ser, por lei, restrito a 0,2% desde 2009 no país, uma enquête de 2013 mostra que, em certos salões, os próprios cabeleireiros preparam a composição com teores de formol mais de 30% acima da norma estabelecida. Os produtos de alisamento estão entre os mais rentáveis na indústria brasileira de cosméticos. “Os cabeleireiros sabem que as clientes às quais eles propõem uma escova permanente terão que retornar em 3 meses. As brasileiras estão dispostas a tudo para se parecerem com as européias, até mesmo colocar a saúde em risco, e por isso esses produtos fazem tanto sucesso”, afirma a jornalista, que considera a volta aos cabelos naturais como uma escolha de enfrentar o olhar da sociedade que exige perseverança.
“Percebi que eu não era o problema”
Foi na internet que Sabrinah encontrou depoimentos que a encorajaram a abandonar o alisamento. “Desde pequena, eu acreditava que meus cabelos eram feios. Porém, pesquisando em diversos blogs, descobrindo múltiplas técnicas para trata-los, percebi que o problema não era eu, e sim os produtos oferecidos no mercado, que acabam com nossos cabelos”. Segundo Diane Lima, diretora do núcleo de pesquisa NoBrasil, foi também a internet que permitiu o nascimento do que aqui foi nomeado “movimento dos cabelos crespos”. Por trás de sua cabeleira que vai até o meio das costas, a jovem expert em comunicação e organizadora do evento Afro Transcendência no início de outubro, em homenagem à comunidade afro-brasileira no mundo da arte, é categórica: “A internet favoreceu a liberdade de expressão. A comunidade afro-brasileira buscava um modo de se exprimir, porém não tinha os meios. Com as redes sociais, a oportunidade nos foi dada”. Na página “As Cabeludas” do Facebook, mais de 28 mil moças compartilham suas experiências cotidianas. Das que optam pelo ‘Big Chop’, isto é, cortar totalmente o cabelo a fim de deixa-lo crescer do zero, sem alterações químicas, às que passam por um cronograma capilar, o grupo permite, sobretudo, que elas troquem informações que não encontram nas revistas femininas tradicionais. Neomisia Silvestre é uma das criadoras da página. Como muitas, a jovem descreve o que ela vivia como uma maldição: “Eu tinha a impressão que meus cabelos eram horríveis, duros, que nada poderia ser feito”.
Os traços do racismo velado
Trabalhando com Rap, Neomisia percebeu que em certos meios, ao contrário, seus cabelos são valorizados. Em 2008, ela decide cortar totalmente os cabelos. Uma decisão ligada à escolha de se tornar militante. “Todos os dias as mulheres negras são confrontadas ao racismo na sociedade brasileira. O meu corte de cabelo também é um modo de reconhecer que sou negra, que me amo como sou, e a sociedade tem de aceitar”. Militante ativa pela “liberdade capilar”, Neomisia lançou há seis anos seu site com algumas amigas. “No início, tratava-se de um projeto confidencial, mas à medida que o tempo foi passando fomos recebendo numerosos relatos”. Moças que perdem o emprego por causa dos cabelos cacheados, outras que são alvo de insulto nas ruas, ou ainda as que são assediadas… Com o passar do tempo, o blog foi reunindo inúmeras experiências de vítimas do racismo institucional brasileiro. Freqüentemente descrito como o país mais racista do mundo, mecanismos de racismo velado ainda atormentam o Brasil. Esta expressão, popularizada nos anos 80, descreve um racismo não verbalizado, implícito, sem violência direta, no entanto enraizado na mentalidade das pessoas. Uma hipocrisia também denunciada pelo dramaturgo Nelson Rodrigues: “Não perseguimos os negros nas ruas com bastões na mão, como muitas vezes ocorre nos Estados Unidos. Porém, fazemos algo que talvez seja pior. A vida dos negros brasileiros é tecida em humilhações. Nós os tratamos com uma cordialidade que esconde covardemente o desprezo que fermenta no nosso interior, dia e noite.”
A Marcha do Orgulho Crespo
Neomisia Silvestre explica que ela própria perdeu muitas oportunidades de emprego devido ao seu corte de cabelo. “Cabelos crespos são vistos como um sinal de negligência. Em algumas entrevistas, me perguntaram se eu aceitaria alisa-los ou corta-los para obter o emprego. Diante da recusa, não fui recontactada”. Em resposta ao sucesso do blog e ao número cada vez mais expressivo de depoimentos recebidos, Neomisia e suas amigas decidiram lançar a primeira “Marcha do Orgulho Crespo”. Como na Parada Gay, mais de 500 mulheres de cabelos encaracolados, trançados, ou em estilo afro se reuniram pelas ruas da cidade. “É uma forma de mostrarmos que existimos, que não temos vergonha e, sobretudo, que devemos ter a liberdade de ser quem somos verdadeiramente”.
A Educação
Para Diane Lima, o despertar da comunidade afro-brasileira também se deve à lei, aprovada em 2003, que obriga as escolas a incluírem a história da cultura afro-brasileira na grade curricular. “De repente tomamos consciência da nossa existência, que temos uma história e que devemos nos orgulhar dela”. Para ela, tanto a escola quanto a internet são os principais elementos dinâmicos que fomentaram esse movimento no Brasil. Nas famílias, mães e avós cresceram numa sociedade ainda muito marcada pela herança da escravidão. Segundo as palavras de Diane, elas interiorizaram a idéia de que seus cabelos são uma anomalia genética. Conseqüentemente, não querem que suas filhas enfrentem o mesmo racismo do qual foram vítimas, e fazem de tudo para “europeizar” suas rebentas. Quando pedem na escola para que as meninas se descrevam, elas se autodenominam “marrom” ou “café com leite”, ao invés de se reconhecerem como negras.
No último censo do país, mais de 136 cores de pele foram repertoriadas. Desde “branco mel”, à “cor de café”, passando por “meio negra”, “branco dourado”… Esta gama de cores ilustra a dificuldade da comunidade afro-brasileira em assumir a cor da pele. Diretora artística do documentário “Da ponta às Raízes”, que aborda o estigma que as meninas negras vivenciam no sistema escolar, Bianca Novais gostaria de divulgar o filme justamente nas escolas a fim de remediar situações discriminatórias. Para a artista de Brasília, há um verdadeiro trabalho pedagógico a ser feito junto às crianças: “É preciso faze-los compreender que não há uma cor de pele mais bonita que a outra, nem um tipo de cabelo mais bonito que outro”. Através de um assunto tido como leve, ela espera tocar uma parte da comunidade afro-brasileira que não se envolve no ativismo. “O objetivo é de nos aproximarmos das pessoas sob o pretexto da estética e da questão capilar, para em seguida abordarmos questões políticas”.
Sabrinah também espera suavemente estimular em suas clientes do salão essa tomada de consciência. Foi ao constatar a dificuldade de achar tratamentos e lugares adequados para cuidar de seus cabelos que ela tomou a decisão de abrir seu próprio salão. Desde então, entre um corte de cabelo e outro, ela também sonha em ajudar suas clientes na recuperação da autoestima: “Muitas chegam aqui com dificuldade, outras obtiveram o contato através de uma amiga ou do Facebook, e praticamente se desculpam por estarem ali. O meu trabalho é embeleza-las, mas também ajuda-las a serem elas mesmas, e assumirem sua própria história e identidade”, orgulha-se. Banir o alisamento e privilegiar os cabelos naturais não é apenas uma escolha estética; trata-se também de uma maneira de permitir a essas pessoas de se orgulharem e se aceitarem, e de não mais sentirem vergonha de quem são.
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