Jarid Arraes, de 23 anos, é uma cearense que usa seu conhecimento sobre a construção da identidade étnica, embasada pela psicologia social, para ajudar outras mulheres negras a se libertarem de todas as amarras sociais, e com isso, redescobrirem o seu papel real na sociedade
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Jarid Arraes, nordestina de Juazeiro do Norte, Ceará, é colunista na Revista Fórum, cordelista, e integrante nos grupos FEMICA – Feministas do Cariri, e Pretas Simoa, onde realiza ações de educação popular sobre cidadania, diversidade sexual e gênero, direitos da mulher e questões raciais.
Jarid também é cordelista, e aborda assuntos atuais e tidos como ‘polêmicos’ em suas rimas, como o feminismo, racismo e homossexualidade |
Sabrinah Giampá – Começou nos Estados Unidos, há poucos anos atrás, um movimento chamado big chop, onde as negras americanas resolveram se libertar da escravidão da química, raspar seus cabelos alisados e assumir, definitivamente o seu cabelo crespo natural. Para isso, elas tiveram que remover suas ‘vendas midiáticas’ para que conseguissem se libertar definitivamente das amarras sociais, e sendo assim, enxergassem a beleza de origem, através da autoaceitação e sentimento de liberdade. Você acredita que assumir o cabelo natural é assumir as próprias origens?
“Resgatar as suas origens étnicas, no Brasil é um processo muito complicado. Envolve um trajeto doloroso de memória e compreensão social, que passa por episódios de humilhação e bullying racista, até o momento de fortalecimento e plena aceitação de si. Na maioria dos casos a consciência sobre o racismo toma corpo, mas cada uma tem a sua forma de entender que foi o racismo que a coagiu a alisar o cabelo.”
Jarid Arraes – Para mulheres negras de cabelo crespo é difícil enxergar a beleza em si, pois são muitos anos de vida – e de infância – ouvindo que nunca serão bonitas o bastante. A maioria das mulheres passa por isso, por causa da cultura machista da nossa sociedade, mas as mulheres negras encaram um aspecto muito específico dessa misoginia: como ‘consertar’ um suposto ‘defeito’ que é sua própria raça? Enxergar a beleza existente em si, depois de todo esse processo histórico de racismo, é um grande ato de coragem.
Jarid Arraes – Eu acho que é muito de cada um desses fatores. Essa questão do alisamento é tão perversa, que mesmo que uma mulher negra tenha o cabelo alisado, ela ainda assim será alvo de chacota. Sempre vai ter alguém pra comentar maldosamente que aquele não é seu cabelo natural. Já vi isso acontecendo centenas de vezes. Percebo que a mulher que resolve abandonar o alisamento e a chapinha cansou de todo esse quadro e está tentando se conhecer e se descobrir.
“Para negras de cabelo crespo é difícil enxergar a beleza em si, pois são muitos anos ouvindo que nunca serão bonitas. Elas encaram um aspecto específico da misoginia: como ‘consertar’ um suposto ‘defeito’ que é sua própria raça? Enxergar a beleza existente em si, depois desse processo histórico de racismo, é um grande ato de coragem.”
Sabrinah Giampá – Como você enxerga o papel da mídia nisso tudo, acredita que ainda faltam referências de beleza de cabelos crespos, e principalmente, das mulheres negras? Como isso interfere em suas relações pessoais, e principalmente, na relação que esta mulher tem consigo mesma?
Jarid Arraes – Acredito que a mídia é um obstáculo enorme nesse sentido, porque ela só atrapalha. Posso estar deixando algo escapar, mas em toda minha vida, nunca vi uma propaganda de produtos para cabelo, que fosse voltada exclusivamente para cabelos crespos, retratados de forma positiva. Também dá pra contar nos dedos as atrizes e cantoras que estão em evidência e possuem cabelo crespo. Não estou falando de cachos abertos, e sim de cabelos crespos, de volume, de ‘rebeldia’. A representatividade é fundamental na construção da autoestima: se a mulher negra não se vê em canto algum de forma boa, como conseguirá ter segurança? A Psicologia como um todo tem vasto conteúdo falando sobre esses fatores e como prejudicam as relações afetivas e profissionais. Se a autoestima não está bem, todas as esferas da vida do sujeito também estão vulneráveis.
“Essa questão do alisamento é tão perversa, que mesmo que uma mulher negra tenha o cabelo alisado, ela ainda assim será alvo de chacota. Sempre vai ter alguém pra comentar maldosamente que aquele não é seu cabelo natural. Já vi isso acontecendo centenas de vezes. Percebo que a mulher que resolve abandonar o alisamento e a chapinha cansou de todo esse quadro e está tentando se conhecer e se descobrir.”
Esse discurso do ‘não é negra, é morena’ é comum, introjetado pelas mulheres, e só é rompido quando se começa a resgatar a história pessoal, fazendo um encontro com alguma conscientização a respeito do racismo. Quando a gente estuda um pouco sobre a história do Brasil, e se depara com esses dados de miscigenação, como política higienista, é mais fácil entender porque somos um país tão racista, apesar de tão miscigenado.
“A representatividade é fundamental na construção da autoestima: se a mulher negra não se vê em canto algum de forma boa, como conseguirá ter segurança? A Psicologia como um todo tem vasto conteúdo falando sobre esses fatores, e como prejudicam as relações afetivas e profissionais. Se a autoestima não está bem, todas as esferas da vida do sujeito também estão vulneráveis.”
Sabrinah Giampá – Conheço histórias de mães que levam crianças de três anos de idade para alisar os cabelos. Estas crianças crescem dentro da cultura do alisamento, e quando adolescentes, desconhecem como de fato é o cabelo natural. A única percepção que têm sobre ele é que é feio e deve ser domado. Você acredita que ainda há um ciclo vicioso onde o preconceito é passado de geração para geração e acaba se enraizando em nossa cultura como um todo?
Jarid Arraes – Com certeza o preconceito é muito ensinado e reforçado em casa, mas não somente. Toda a sociedade é responsável pela educação das crianças, não só a família. Como esperar que uma criança ame seu cabelo natural se tanto em casa quanto na escola, na rua e na televisão é mandada fazer o contrário? Por outro lado, se em casa existir apoio intenso, torna-se mais possível resistir ao racismo e crescer cuidando do cabelo natural. Ainda assim é algo muito difícil. Vejo muitas mães do Feminismo Negro, que se esforçam diariamente, para que suas filhas e filhos amem o cabelo crespo, mas quando as crianças chegam na escola, só escutam discriminação.
“Se tinha a ideia de que, miscigenando a população, em algum tempo, a negritude seria ‘apagada’ da genética do povo, e aí a ‘degeneração’ negra não mais existiria. Então, é lógico que tudo o que for compreendido como característica negra, vai ser repudiado, assim como o cabelo que cresce para cima. Essa mentalidade existe até hoje, porque a maioria das pessoas prefere se inclinar para o lado mais branco possível. “
Jarid Arraes – Esse aspecto que você citou precisa ser analisado sob duas óticas: a de gênero e a racial. A mulher negra decide que vai cortar todo o cabelo com química e deixar crescer natural, mas nossa cultura ainda diz que a mulher tem que aceitar e achar natural que o homem controle suas decisões e tenha opiniões proibitivas. Isso só nos mostra como essa questão é mais complexa do que parece, o empoderamento e a autonomia feminina são fundamentais.
“Esse discurso do ‘não é negra, é morena’ é comum, introjetado pelas mulheres, e só é rompido quando se começa a resgatar a história pessoal, fazendo um encontro com alguma conscientização a respeito do racismo. Quando a gente estuda um pouco sobre a história do Brasil, e se depara com esses dados de miscigenação, como política higienista, é mais fácil entender porque somos um país tão racista, apesar de tão miscigenado.”
Sabrinah Giampá – Mesmo quando conseguem assumir o cabelo natural, essas mulheres têm que lidar com o preconceito em todos os lugares, principalmente da própria família, e muitas não suportam o fardo, e acabam sucumbindo às químicas. Já ouvi queixas de que são abordadas, inclusive no ambiente de trabalho, onde se alega que o cabelo crespo é inapropriado e antiprofissional, e que elas precisariam ‘dar um jeito’ nele, ou seja, abaixar o volume característico. O que você pensa sobre isso?
Jarid Arraes – Sobre o contexto de emprego, minha opinião é de que isso precisa ser denunciado. Nenhuma empresa tem direito a isso, seja com homem ou com mulher, e se esse tipo de racismo acontecer, tem que virar assunto de delegacia. Já no contexto familiar, é preciso muita força realmente, às vezes, muita paciência para estar sempre argumentando, rebatendo, ensinando. Por isso, novamente cito a importância da autonomia nesse processo.
“Como esperar que uma criança ame seu cabelo natural se tanto em casa quanto na escola, na rua e na televisão é mandada fazer o contrário? Por outro lado, se em casa existir apoio, torna-se possível resistir ao racismo e crescer cuidando do cabelo natural. Ainda assim é algo muito difícil. Vejo muitas mães do Feminismo Negro, que se esforçam para que seus filhos amem o cabelo crespo, mas quando as crianças chegam na escola, só escutam discriminação.”
Outro exemplo que torna esse faceta mais visível é o concurso Globeleza, exclusivo para mulheres negras. Enquanto concursos, como Miss Universo, são dominados por mulheres brancas, o Globeleza é voltado somente para as negras. O Miss Universo fala de mulheres belas, educadas, clássicas, refinadas, etc., enquanto o Globeleza é o retrato do carnaval, da sexualidade permitida sem freios durante aquele feriado. Pessoalmente, não considero nenhum dos dois concursos bons, pois acredito que reduz o lugar do feminino ao de ‘musa’ e ‘enfeite’ – além de traçar padrões estéticos óbvios – mas até mesmo nessa comparação, podemos perceber que a mulher negra sempre é limitada ao estereótipo sexual.
“A mulher negra decide que vai cortar todo o cabelo com química e deixar crescer natural, mas nossa cultura ainda diz que a mulher tem que aceitar e achar natural que o homem controle suas decisões e tenha opiniões proibitivas. Isso só nos mostra como essa questão é mais complexa do que parece, o empoderamento e a autonomia feminina são fundamentais.”
Hoje, temos uma lei que obriga as escolas a falarem sobre história africana e questões raciais em seus currículos, mas isso não é posto em prática porque os educadores não estão preparados e nem interessados. O mesmo vale para o Ensino Superior. Na Psicologia, por exemplo, passei por todos os semestres sem que existisse uma disciplina sequer, dedicada a discutir o sofrimento gerado pelo racismo e as implicações subjetivas e sociais da discriminação racial. Isso pode ser dito da maioria dos cursos superiores do Brasil. Então fica evidente que a educação pode fazer algo para que a realidade melhore, mas no momento seu papel tem sido o de naturalizar o preconceito.
“As mulheres negras sofrem com o estereótipo do objeto sexual consumível e descartável desde a época da escravidão no Brasil. Para os ‘donos’ das escravas, as negras eram um fetiche sexual exótico fácil de manter, pois não exigia qualquer espécie de compromisso, afeto ou respeito. Esse paradigma perdura até hoje, e a mídia continua representando as mulheres negras desta forma, pois elas têm a ‘cor do pecado’, e vão aceitar qualquer um, a qualquer momento, e de qualquer forma. “
Jarid Arraes – Sofri preconceito a vida inteira por causa do meu cabelo e dos meus traços faciais. Era muito criança quando meu cabelo foi alisado pela primeira vez. Sofria bullying na escola e entre primas brancas de cabelo de liso. Minha vivência, de fato, não é diferente do que podemos ouvir quando qualquer mulher negra começa a contar sua história e sua relação com seu cabelo crespo.
“O Miss Universo fala de mulheres belas, educadas, clássicas, refinadas, enquanto o Globeleza é o retrato do carnaval, da sexualidade sem freios durante aquele feriado. Pessoalmente, não considero nenhum dos dois concursos bons, pois acredito que reduz o lugar do feminino ao de ‘musa’ e ‘enfeite’ – além de traçar padrões estéticos óbvios – mas até mesmo nessa comparação, podemos perceber que a mulher negra sempre é limitada ao estereótipo sexual.”
Jarid Arraes – Hoje é essa relação que tenho, meu cabelo é muito mais do que uma característica estética do meu corpo, é símbolo de resistência e reconhecimento da minha negritude. Foi por causa do meu cabelo que comecei a perceber que eu não era ‘morena’ coisa nenhuma, era negra. E é isso que eu deixo de mensagem para cada leitora: veja além do preconceito que foi ensinado desde a infância. Tem muito mais em você do que tentam limitar. O cabelo crespo e cacheado pode mudar sua vida depois que você decidir assumí-lo e se relacionar com ele genuinamente. Desejo isso para todas.
“Sofri preconceito a vida inteira por causa do meu cabelo e dos meus traços faciais. Era muito criança quando meu cabelo foi alisado pela primeira vez. Sofria bullying na escola e entre primas brancas de cabelo de liso. Minha vivência, de fato, não é diferente do que podemos ouvir quando qualquer mulher negra começa a contar sua história e sua relação com seu cabelo crespo.”
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Anônimo says:
Adorei essa entrevista. Acompanho a Jarrid nos textos que ela escreve no Blogueiras Negras. Penso como ela sobre o cabelo crespo como símbolo de resistência nesse mar de cabelos alisados. Eu ostento todos os dias os meus fios crespos e nunca antes me senti tão bonita e bem comigo mesma como me sinto agora.