Percebo que a maioria das mulheres sofrem com a transição capilar mais do que o necessário por uma única razão: o medo de abrir mão do comprimento do cabelo.  Muitas aguentam duas texturas distintas por mais de um ano, aguardando que o cabelo natural crescido atinga um tamanho ‘socialmente aceitável’ para o grande corte. E com isso, passam por uma longa fase de tortura, e baixa autoestima, sem conseguir se desfazer dos elásticos, chapinhas e afins. Afinal, o cabelo comprido é sinônimo de cobiça, para a grande maioria, que acredita fielmente que se abdicar do comprimento estará abrindo mão também da sua feminilidade e sensualidade. Mesmo que na maior parte do tempo, use este cabelo comprido preso, devido ao seu estado deteriorado por uma infinidade de químicas agressivas.

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Natália aguentou 2 anos em transição capilar antes de fazer seu big chop, para conseguir um ‘curto socialmente aceitável’. Passou todo este período com os fios amarrados.

Noto também que muitas mulheres que optam pelo big chop total, dão início a uma contagem regressiva de crescimento logo após ao término do corte, buscando todas as receitas ‘milagrosas’ de crescimento possíveis e medindo os fios em centímetros a cada semana. E deixam de aproveitar a fase maravilhosa do cabelo curto em crescimento.

Esses dias recebi um e-mail da J., recém ‘big chopada’, me pedindo orientações sobre um produto milagroso sobre crescimento que viu pela internet.  A preocupação dela após o big chop era a seguinte: “Assumi os cachos a pouco tempo e vou me casar no ano que vem. Queria chegar lá arrasando. Até acho que está crescendo bem, mas não vejo a hora dele estar enorme e volumoso”.

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J. estava desesperada por produtos milagrosos para crescimento dos fios, pois queria ‘arrasar’ em seu casamento, e para isso precisaria de fios compridos e volumosos. Será?

Assim como J., muitas mulheres desesperadas para ter o cabelo comprido novamente acatam qualquer besteira que leem na internet e acabam se tornando presas fáceis de aproveitadores. Cheguei a ouvir falar de uma ‘técnica’ em que as mulheres aplicavam óleos vegetais (nada contra eles, eu amo e recomendo) no couro cabeludo e ficavam um tempo de ponta cabeça, repetindo: de ponta cabeça mesmo, podem acreditar! A justificativa era de que o sangue dirigido para aquela região ativasse a circulação e acelerasse o crescimento de forma sobrenatural.

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Andressa Bárbara, que fez seu big chop na Garagem dos Cachos com a máquina 04.

Não ter que molhar e prender ele todos os dias é maravilhoso. Eu tenho incentivado várias meninas que me perguntam sobre o bc, pois me libertei de algo que não queria mais pra mim, foi de coração, e por isso não me arrependi em nenhum momento. Agora a única coisa que sinto é a ansiedade pra ver ele crescendo, pegando formas.

Mas será mesmo que o comprimento dos cabelos é o que realmente nos define como mulheres?

Em um artigo sobre feminilidade, Beatriz Beraldo nos fala sobre este conceito que é tão controverso. Ela questiona sobre o que é ser feminina no contexto atual: um aspecto natural das mulheres ou uma construção do imaginário cultural e midiático? O que nos faz questionar até que ponto a modernidade, que consagrou a cultura do consumo, e a sociedade patriarcal, que coloca a mulher como inferior ao homem contribuiu com a imagem que adotamos como ‘feminina’ nos dias atuais.

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Autoretrato da artista mexicana modernista, Frida Kahlo. Mulheres aprisionadas por cabelos longos,espartilhos, e roupas apertadas, que lhe impediam o movimento (embora também fizesse alusão ao seu problema físico e falta de mobilidade, que endossava ainda mais estes estigmas)

A socióloga Cláudia Sciré nos explica de forma detalhada: “Se formos considerar a estética feminina como uma construção cultural que muda com o passar dos tempos, perceberemos como as representações do corpo da mulher, de seus gestos e modos de ser e de se apresentar na sociedade tem sido constantemente marcados por categorias que as opõem aos homens e ao mesmo tempo marcam seu lugar de inferioridade.” Vide propagandas de cerveja que nos transformam em acompanhamentos cosmetiveis e saltos tão altos que limitam nossos movimentos.

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Aglalpe Mariana, que também fez seu bc na máquina 04, na Garagem dos Cachos, se deparando com sua nova imagem pela primeira vez

“Fiquei dois meses sem química e decidi fazer o BC. No dia do corte, tive até uma crise de estresse (hahaha), mas foi a melhor coisa que fiz. Não fiquei masculina, mas também não estou saindo super produzida, e na verdade estou me sentindo muito bem. Ah, e o  CABELO CRESCE, VIU, E MUITO RÁPIDO! E se você acha que deve fazer o BC, e estiver com dúvida, com medo do que as pessoas vão achar, FAÇA do mesmo jeito, porque as pessoas SEMPRE acham coisas, o que importa é ser feliz!”.

“Na etapa de capitalismo tardio que vivemos, percebemos como essas categorias, que têm sido construídas para a manutenção da ordem patriarcal, são usadas pela publicidade com o intuito não só de conformar um mercado da beleza e da estética que não para de crescer, da mesma forma que fragmenta e assim silencia o corpo da mulher, que fica cada vez mais inerte”, explica.

Contei nos dedos o dia do ‘grande corte’. Estava bem animada para mudar de vez o visual. Meus amigos e familiares me apoiaram bastante. Todos me encorajaram dizendo que ia ficar legal, e esse apoio foi fundamental. O dia chegou e enfim, lá estava eu, 27 anos depois de muita tortura com chapinha e produtos que só danificaram meu cabelo. Após o big chop, me senti totalmente livre. De ímediato me achei um pouco estranha(risos), mas é normal. Agora já estou bem acostumada e descobrindo aos poucos o que meu cabelo gosta, aprendendo a lidar com ele do jeitinho que ele é.

Os cabelos enquanto uma das partes mais visíveis desses corpos fragmentados têm sido usados na nossa estética, principalmente Brasil, juntamente com outros ‘pedaços’ (bunda, seios, boca etc.) para comunicar o gênero feminino numa narrativa construída para colocar a mulher num espaço cultural simbólico que muitas vezes desemboca na dominação. Segundo a socióloga, a ditadura do cabelo liso e longo faz parte um conjunto de representações que contribuem para um esvaziamento das multiplicidades que compõem o ser mulher,  transformando isso em algo naturalizado, como se o cabelo longo fosse naturalmente um atributo associado ao ser feminino.

“Esses elementos discursivos geram e alimentam padrões ideais. Assim os cabelos compridos fazem parte de um mosaico de ideias que vão criar uma imagem de mulher que agrada ao capitalismo atual: mulher que se crê independente e poderosa, pois consome tempo e dinheiro para se fortalecer enquanto mais feminina, mas ao mesmo tempo,  reforça feixes que contribuem para a sua constante submissão a imagem de si mesma, que foi imposta de fora e por padrões masculinos e do mercado.”

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A atriz norte-americana, Jennifer Aniston, que definiu nos anos 2000 o padrão de beleza da mulher feminina e sensual: fios longos e loiros e corpo trabalhado sem gorduras e ‘imperfeições’.

O tempo que uma mulher precisa investir para manter o cabelo longo bem cuidado, acaba a privando de investir em si mesma, e usar seu tempo para desenvolvimento pessoal e até mesmo para o lazer. Enquanto homens conversam com os amigos em uma mesa de bar, ou fazem uma pós graduação, leem um livro interessante, esta mulher perde um tempo precioso para se dedicar apenas ao cabelo. Isso sem contar o dinheiro investido em cosméticos e alisantes, que cá entre nós, a indústria cosmética agradece.

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A capa da Nova reflete exatamente o padrão de beleza feminino que a mídia e a indústrica capitalista nos estabeleceu sobre o que é ser mulher: os cabelos são sempre longos e levemente ondulados, o que remete à sensualidade. Ou seja, independente de ter uma carreira e ser bem sucedida, a sensualidade deve prevalecer em todos os aspectos da vida.

Quando fiz meu curso de visagismo, somei à minha especialização em semiótica, uma visão ainda mais apurada do quanto nossa imagem pode ser mal interpretada. Conheço muitas mulheres inteligentes e bem articuladas, que acabam sendo engolidas no mercado de trabalho, não apenas pelo machismo do mundo corporativo, mas também por apresentar uma imagem equivocada, incapaz de transmitir suas reais habilidades e capacidades, ou seja, que diz algo diferente sobre si mesma e não faz jus a pessoa que ela realmente é.

Geralmente, quando a mulher precisa passar mais credibilidade no trabalho, sempre sugiro se desfazer do cabelo longo. Não necessariamente um corte curtíssimo, mas pelo menos na altura da clavícula, e sem franjinha reta, pois a testa a mostra nos revela inconscientemente o quanto esta mulher valoriza o seu intelecto, o que a torna mais altiva. E a franjinha reta infantiliza. Agora franjas laterais transmitem dinamismo e são super benvindas.

Nada contra os fios longos, mas o foco interpretativo destes é outro. Transmitem, na maioria das vezes, apenas uma imagem ligada a sensualidade e dependência, como se aquela mulher precisasse daquele escudo, de uma proteção, e que seus cuidados com a aparência fossem mais importantes que os cuidados com o seu desenvolvimento pessoal, mesmo que, na grande maioria das vezes, isso não seja uma verdade.

De acordo com o mestre do visagismo, Philip Hallawell, que foi o meu tutor no curso, os cabelos soltos significam disponibilidade e falta de compromisso. “Os cabelos longos expressam submissão e dependência, que pode ser emocional, financeira ou social, porque, como qualquer imagem, são compostos de linhas e formas, que têm significados universais e criam uma dinâmica visual. Toda linha do cabelo, abaixo do lóbulo da orelha, tem uma dinâmica visual para baixo, em direção ao chão, o que sugere que busca o apoio do solo. Por isso o cabelo longo é pesado e expressa dependência e necessidade de apoio. As linhas do cabelo curto direcionam o olhar para cima e expressam leveza e independência. O cabelo na altura do ombro é neutro.”

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Para o mestre do visagismo Philip Hallawell, os cabelos longos expressam submissão e dependência, que pode ser emocional, financeira ou social

Para Phillip, a mulher de cabelos longos e soltos expressa disponibilidade e dependência, que apela aos instintos masculinos de dominação e conquista sexual. “O ato mais sedutor da mulher é quando solta os cabelos longos presos para um homem, porque se submete a ele. Esse é o maior poder de atração que esse tipo de mulher tem. Mas, fica a pergunta: depois que atraiu o homem dessa maneira, como continuará o atraindo se não há mais o encanto da conquista e da submissão?”

Ter o cabelo curto é um processo extremamente libertador. Não apenas pela praticidade, mas pela possibilidade de nos ‘desnudarmos’ daquele escudo que o longo proporciona. Pela possibilidade de deixar nosso rosto em evidência, o que mostra que esta mulher não tem motivos para se esconder e nem receio de expor suas ideias. Ou seja, transmite independência.

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A atriz Emma Watson em três versões: fios longos, medianos e curtos. Enquanto a primeira foto transmite uma imagem adolescente e pueril, a segunda mescla sensualidade (devido as ondas) sem perder a seriedade, e a última independência e força. A questão é: que imagem você deseja transmitir?

Entre os comentários que recebo após a publicação das fotos de big chop, o principal é este: – Que coragem! (Como se a mulher tivesse amputado um braço). Ou então: -Seu rosto é bonito, fique tranquila que o cabelo irá crescer longo – que é como se aquela mulher precisasse dos fios longos para se impor como mulher na sociedade, o que é um pensamento extremamente medíocre para os dias de hoje.

O importante é curtir todas as fases, inclusive a do curto, sem a ansiedade do crescimento e sem a necessidade de se esconder com acessórios, que vejo também na maioria dos comentários: – Passa um batom vermelho (mesmo que não faça parte do estilo da pessoa usar esta cor de batom) – Bota um brincão! – Use um turbante!

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A atriz Sharon Menezes com turbante, batom vermelho e brincos grandes. Os acessórios valorizam a beleza da atriz, mas devem ser uma opção de diversificar o visual e não uma imposição para quem fez o big chop

Não que eu condene este tipo de artifícios. Acho bonito, e pode valorizar a beleza da mulher, mas depende muito do estilo e da mensagem que ela gostaria de transimitir. Mas o que gostaria de ressaltar é que os acessórios tem que ser uma opção e não uma obrigação para esta fase. Não, você não precisa deles para passar por esta fase, mas pode usá-los quando estiver com vontade de criar um visual diferente ou quando sentir necessidade, mas não como um escudo.

O que acho o mais legal do big chop, não é apenas este processo de mudança que vem de dentro pra fora, de autoaceitação, e sim a possibilidade que ele nos oferece de experimentarmos novas facetas de nós mesmas, de aprendermos a nos desnudarmos na frente do espelho e reconhecer que nossa beleza é única, que não precisamos de artifícios e nem de uma infinidade de cosméticos, só precisamos nos amar e sermos felizes.

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  1. Amei a matéria.
    Matéria inteligente e esclarecedora.
    Tive à 1 mês a experiência do BC e percebi que estou mais vaidosa.
    Ouvi de algumas pessoas sobre receitinhas milagrosas p crescimento , medicamentos que ajudam no crescimento e a minha resposta foi “Estou curtindo meu curtinho”.
    Frases como “Ainda bem que vc tem o rosto bonito” e “Seu marido deixou? Seu marido gostou?”. Acredito que aceitação vem de mim e não doa outros, “Se o meiu marido deixou? Não sei eu não pedi “permissão” para cortar, o cabelo é meu então minhas regras, agora se ele gostou a frase dele foi a seguinte “vc está linda meu amor, até careca continuaria linda”.
    Hora de tirar os rótulos e sermos nós mesmas, aceitação é o primeiro passo.

  2. AMANDA ALVES REIS CARVALHO VIEIRA says:

    Eu fiz Big Chop há 2 anos e fiquei exatamente como todos essas mulheres relatadas. Há 2 semanas, decidi cortar porque vi um corte bacana e cortei. Agora as pessoas ficam me perguntando por que eh cortei o cabelo. É como se eu ao tivesse o direito de cortar.

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