Uma cliente minha da Garagem dos Cachos, a pedagoga, Maísa, que está se livrando da progressiva em doses homeopáticas, me comentou sobre um livro infantil que trata de toda essa problemática. O livro se chama Peppa, da autora Silvana Rando, editora Brinque Book. Fiquei curiosa a respeito, e a Maísa me fez a caridade de escaneá-lo e me enviou por e-mail. 

Rapidamente, devorei esse livrinho, repleto de ilustrações graciosas. Entretanto, no começo da leitura, achei que ele adotou um tom depreciativo em relação aos cabelos crespos, e em alguns aspectos, até preconceituoso.
Digo isso, principalmente, quando a autora conta sobre o nascimento da personagem. Ela enfoca que Peppa nasceu com o cabelo mais forte do mundo, resistente como fios de aço. 
Confesso, que me causou um certo mal estar em ler isso, pois, de imediato, minha mente associou fios de aços com a palha de aço, usada para depreciar os cabelos crespos de forma preconceituosa e injusta. Digo injusta, porque o cabelo crespo não é duro e áspero como uma palha de aço, e muito menos forte. Muito pelo contrário, é um cabelo fino e sensível, absurdamente delicado, e com a suavidade de um algodão. Enfim, acho que a autora não sabe disso e tem a mesma percepção negativa que a sociedade nos transmite em relação aos nossos cabelos. Isso fica ainda mais evidente no trecho que cito abaixo:
Maísa, que é pedagoga e cliente da Garagem dos Cachos,
que me indicou esse livro
O cabelo de Peppa é tão forte, que ela consegue fazer ‘coisas incríveis’ com ele, como arrastar o berço pesado, o carrinho de feira, e imagina: até brincar de cabo de guerra e carregar a mobília em dias de mudança! Divertido, não? Francamente… achei pejorativo demais! Mas mesmo assim, respirei fundo e continuei com a leitura.
“A única coisa que Peppa não gostava era quando a mãe cortava um fio do seu cabelo ( com um alicate gigante) para fechar o pacote de biscoitos”. Eu simplesmente parei ao ler isso. Fiquei estarrecida com a comparação do cabelo crespo com o arame de prender sacos de alimentos. O que é chamado de ‘preconceito estrutural’ estava ali, para quem quisesse ler. Respirei um pouco mais e continuei.
Nessa outra etapa da história, Peppa caminha tranquilamente na rua quando se depara com um anúncio de um salão de beleza prometendo o milagre do alisamento. A pobrezinha nem dormiu pensando na possibilidade. Nesse caso, eu imagino o porquê: ela é obrigada a usar o cabelo como cabo de aço para fazer mudanças, carregar carrinho de feira e amarrar saco de biscoito… diversão demais pra uma criança, não acham? rss

Mas tirando a parte pejorativa do início do livro, o dilema de Peppa em relação à promessa do alisamento, que hoje em dia poderia ser uma progressiva, dos inúmeros tipos que existem por aí, é bem educativo.
Acho que as mães que lessem esse livro pras crianças deveriam ignorar as páginas iniciais, fazer uma readaptação desta, e  ir direto para o dilema de Peppa com o alisamento. 
Gostei dessa parte do livro, justamente, devido à lista de provações que Peppa recebe quando sai do salão alisada. Sim, mesmo criança, ela conseguiu fazer um alisamento, algo que não se difere na realidade, e por isso, enxergo esse trecho de forma positiva, até porque, não dá pra esconder a realidade das crianças, fingir que não existem alisamentos, porque elas convivem com outras crianças que são submetidas por suas mães à esse tipo de experiência, e se questionam em relação a isto.
Peppa é iludida  pelo milagre da escova progresssiva –
recomendo esse livro apenas a partir desta página, pois achei o início com teor pejorativo
Mas retornando a lista de proibições, lá estavam velhas conhecidas pela maioria de nós:
– Não nadar na piscina
– Não andar a cavalo ( essa eu não entendi)
– Não entrar no mar
– Não saltar de paraquedas
– Não andar de montanha russa
– Não rolar na grama
– Não tomar chuva
– Não transpirar demais
– Não pular demais
– Não correr demais
– Não rir demais
– Não abrir a porta da geladeira mais de dez vezes ao dia
Peppa percebeu que o preço para ter um cabelo liso era muito alto,
como deixar de tomar um banho de piscina no alto verão, por exemplo.
Resumindo: deixar de viver. E foi exatamente essa a lição de vida que Peppa tirou dessa história toda. Quando ela se deu conta que não poderia fazer grande parte das atividades prazerosas, que antes eram constantes em sua vida, ficou muito triste e entediada. E com o passar dos dias, muito, mas muito irritada. E no ápice da irritação, ela finalmente cede ao calor e se joga na piscina, abrindo mão daquele cabelo liso e do universo de privações que ele transformou sua vida. 
Achei esse final grandioso, afinal, mergulhar numa piscina pode significar tanta coisa para o nosso subconsciente. Mergulhar numa piscina é se jogar,  se permitir,  se libertar,  se refrescar,  conseguir um alívio pra tormenta do calor,  se desprender dos fardos da vida, e principalmente, mergulhar é se fundir consigo mesma, retornar às origens, ao útero. Mergulhar é ser feliz. E foi essa a opção de Peppa: ser feliz com o cabelo que nasceu com ela. E essa mensagem eu acho positiva de se transmitir às crianças, e portanto, se eu fosse mãe, adaptaria a primeira parte do livro e contaria a história a partir do conto da progressiva. 
É importante que as crianças crespas, desde a infância, recebam incentivo dos pais na aceitação dos fios naturais, indo contra o que a sociedade nos impõe desde cedo, conforme contei nesta matéria aqui. Meu objetivo aqui é que a nova geração de crespas tenha uma infância mais saudável e feliz, isenta de falsos bloqueios que foram impostos pra maioria de nós. 
  1. Tô chocada rs só isso que tenho a dizer em defesa da pobre personagem

    É infelizmente ainda é uma questão cultural (cabelo duro, cabelo ruim,etc)

    Mas como você disse dá pra fazer uma reflexão positiva sobre o assunto, mas acredito que uma criança não tenha discernimento suficiente para isso

  2. Exatamente, Jackie. Cabe às mães readaptarem as histórias apresentadas ( ou pelo menos parte delas), pois elas apenas disseminam a cultura do preconceito. Por outro lado, aquela parte do livro, que mostra Peppa sendo ludibriada pela ‘magia’ dos alisamentos e o momento em que recebe aquela lista de privações, é sensacional.

  3. Não entendi como preconceito, não. Sabe o que acho? Acho que a autora retratou o preconceito DOS OUTROS quanto ao cabelo crespo. Pelas poucas linhas que li, não me parece um preconceito DA autora, mas sim uma NARRATIVA reunindo a opinião de muita gente, pra dramatizar o que uma pessoa de cabelo crespo sofre. Como se ela estivesse dialogando com a problemática de um cabelo “ruim”. Como se ela, naquele momento, estivesse transcrevendo a visão dos outros sobre tal cabelo.
    A força de arrastar um móvel não me soa como preconceituoso, até porque o cabelo do super-homem é liso e segura até bigorna… rsrsrs. E ninguém tacha como uma ideia preconceituosa.
    Acho que a linguagem literária nem sempre pode ser lida ao pé da letra.
    O problema é pegar um trecho e dissecá-lo fora do contexto, e aplicando um outro contexto, que vai muito de cunho pessoal. É um erro grave ao se analisar uma obra literária. Até porque o objetivo do livro é justamente o contrário.
    E espalhar esse debata, direcionando a uma única opinião, é injusto com o outro lado, e gera uma ditadura opinativa que não é boa pra ninguém. Eu, como crespa, negra e “ex-progressiva”, não senti nenhuma conotação pejorativa.

  4. Tatica, acredito que a interpretação de um texto pode variar de pessoa para a pessoa, mas de acordo com minha experiência de mais de dez anos em jornalismo e minha especialização em Comunicação e Semiótica, que me permitiu analisar o livro minuciosamente nas entrelinhas, ficou claro para mim os traços de preconceito ali expostos, independente destes representarem a visão da autora e/ou sua visão de mundo.
    Arrastar um móvel pode não parecer preconceituoso quando vinculamos à idéia de herói, mas comparar o cabelo crespo com palha de aço e um arame pra amarrar pacote de biscoitos, sim. E pelo que me lembro da história do super homem, não é o seu cabelo que arrasta as coisas, e sim ele próprio.
    Não vejo minha análise como algo ‘ao pé da letra’, também não concordo que minha opinião tenha fugido do contexto, mas como você mesma citou, vai muito de cunho pessoal. E se analisar uma obra literária é um erro grave, esse erro é cometido diariamente em inúmeras escolas do país. Não estou julgando o objetivo do livro em si, até porque a mensagem final foi muito válida, apenas estou me opondo à mensagem inicial que me foi transmitida, o que pode variar de pessoa para a pessoa, e por isso este é um blog, e como autora, expresso minha opinião real a respeito de tudo, o que, obviamente, não obriga ninguém a concordar com ela. Todo o tipo de debate, ao meu ver, é saudável.

  5. Fabiana says:

    TODAS as paginas do livro são preconceituosas, é aquele tipo de livro q chega doí na nossa alma!São investidas na desconstrução do longo trabalho que vem sendo feito no sentido de restituir a auto-estima das crianças negras!! que cena bizarra é esta no salão de beleza a dona fica exausta e com os dedos feridos, depois de tratar o cabelo da Peppa, e com matérias tipo alicate!! É surreal imaginar que as escolas adotem um livro deste . É um LIXO!!! Não ajuda em nada a valorizar a beleza natural!!! E a ultima frase do livro ” e la se foram os cabelos lisos e sedosos” ..que moral é esta?? o bonito é o liso?? que dizer que o cabelo de peppa é mesmo aço?!repudio a este livro!!

  6. Cassia Marostica says:

    Ahhhh… Vocês precisam ler um livro lindo, chamado: O mundo Black Power de Tayo, a autora é Kiusam de Oliveira, ilustrações de Taísa Borges.
    Participei de um evento da Sec. Municipal de Educação de S. Paulo, e pude ouvir várias experiências positivas com este livro. Relatos de professores e alunas!!! Lá falaram da forma pejorativa que falam dos cachos e os ilustram no Peppa.
    Este livro da Kiusam, é de uma delicadeza… TODOS PRECISAM CONHECER!!!
    “O BLACK POWER DE TAYÓ É ENORME, do tamanho da sua imaginação. Ela ama tanto os bichos, a natureza, os alimentos, as pessoas e os planetas que, por vezes, projeta todo esse universo em seu penteado” p.24

    *pena que dá pra colocar as imagens aqui.

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