Crianças, cabelos crespos e o ciclo vicioso do preconceito

Com base em minha história e de muitas mulheres crespas se cacheadas que tiveram ou ainda têm muita dificuldade em assumir os seus fios naturais, percebo que este bloqueio faz parte de uma espécie de ‘cultura do preconceito’, que é passada de geração para geração. E assim como aconteceu comigo em meu processo de aprendizado, onde recebi da minha mãe a mensagem de que meu cabelo era inapropriado, minha mãe deve ter aprendido o mesmo com a mãe dela, e assim sucessivamente.

A socióloga Claudia Sciré, autora do livro Consumo Popular, Fluxos Globais

De acordo com a socióloga, Claudia Sciré, autora do livro Consumo Popular, Fluxos Globais, e do blog Fluxos Globais, as atitudes dos pais nada mais são do que a continuidade de um círculo vicioso de preconceito. “Provavelmente, esses pais também foram vítimas durante sua infância, e agora, visando evitar o sofrimento de seus filhos diante de atitudes de preconceito de coleguinhas e outras crianças e adultos, acabam adotando uma postura de que o bonito é ter cabelo liso. Assim, a reprodução dos preconceitos ocorre de geração para geração a partir de padrões de beleza que são concebidos tendo como base outras culturas (no nosso caso, a europeia) e legitimados ao longo de décadas com a ajuda da mídia”.

Tathiana Frascino, mãe da pequena, Manu, de dois anos de idade, rema contra a maré e tenta passar os valores da aceitação para sua filha de cabelo crespo: “quando acabo de arrumar o cabelo dela, sempre digo que ela está linda, e ela adora! Sei que existem estereótipos de beleza impostos pela sociedade: como magreza excessiva, silicone e músculos em evidência, mas não sigo nada disso e sempre vou orientá-la a ser feliz sendo ela mesma”, afirma.

Tathiana Frascino e sua filhinha Manu, de apenas dois anos

Para Cláudia Sciré, a mídia é apenas um dos vetores que contribui para a expansão de um posicionamento que envolve um padrão de beleza hegemônico, e que tende a se inspirar em padrões de beleza que em nada condizem com nossa cultura totalmente miscigenada, com influências fortíssimas de países africanos. “Outros vetores são os próprios cabeleireiros, ditadores de tendências de moda e a própria sociedade que, muitas vezes já internalizou, desde cedo, o que é socialmente considerado bonito ou feio. Quando se fala em idolatria ao liso, não se pode esquecer que se trata de um posicionamento que vem sido construído ao longo de anos e que visa a imposição de uma certa visão de mundo (e de beleza) por alguns setores da sociedade. Justamente aqueles que possuem mais poder para dar continuidade a esta ideia”, reforça.

Embora algumas mães, como a Tathiana, tentem transmitir valores positivos para seus filhos, o poder do exemplo pode colocar tudo a perder. “Influências externas como quando a mãe alisa seu próprio cabelo, mas diz ao filho que o crespo dele é bonito, podem passar uma mensagem dúbia, ou seja, podem transmitir exatamente o contrário do que a mãe desejava passar, e acarretar problemas futuros”, explica a psicóloga, Maria Beatriz Meirelles Leite.

Daniela Lisboa, cabeleireira especializada em cabelos crespos e cacheados

Para a cabeleireira especializada em cabelos crespos e cacheados, Daniela Lisboa, do Floreal Clínica dos Cachos, o acesso à informação cada vez mais amplo, devido às redes sociais, blogs, fóruns e grupos, acaba facilitando os cuidados com os cabelos crespos, independente da pessoa ter ou não uma boa condição financeira. “Nesse caso é um ciclo virtuoso, pois a experiência de algumas pessoas acaba ajudando outras”, explica.

“As mães, em sua maioria, querem sempre o melhor para seus filhos; o que acontece quando o assunto é cabelo, é que algumas nunca precisaram lidar com fios crespos, pois tem cabelos lisos e/ou vêm de uma família onde os lisos predominam. Outras, nasceram com os fios crespos, mas não tiveram os cuidados adequados na infância, e/ou tiveram um histórico capilar traumático, o que irá influenciar diretamente nos cuidados com os cabelos dos filhos, especialmente se forem mulheres. É isso que  leva ao alisamento ‘precoce’”, explica.

Segundo ela, o cabelo infantil é muito mais fino que o do adulto, e por isso recomenda produtos mais naturais, se possível sem ingredientes como sulfatos, parafinas e afins. Para Carlos Jamayka, hairstylist do Glass Hair Boutique, o cabelo infantil é muito mais fácil de lidar porque ainda não sofreu o processo progressivo de deterioração, causado por químicas e excesso de sulfato dos xampus. “Minha primeira recomendação é nunca usar pente para desembaraçar, porque como o couro cabeludo está em desenvolvimento, isso acaba se tornando algo muito doloroso. O segredo é investir em produtos infantis e caprichar no condicionador, usando os dedos para desembaraçar, como se fosse um carinho”, explicou.

Eliane Serafim dá dicas, para cabelos crespos e cacheados, no blog Encaracoladas

Para a blogueira do Encaracoladas, Eliane Serafim, em cabelos crespos/ afro, o condicionador, na maioria das vezes, não basta: “Por isso recomendo o uso de óleos vegetais para umectação, como o de abacate, por exemplo”, explica. Daniela Lisboa, do Floreal Clínica dos Cachos, e também blogueira do Encaracoladas, apoia esta iniciativa: “ Óleos vegetais são benvindos”.

De acordo com Eliane Serafim,  o papel da mãe é incentivar o filho para aceitar seu cabelo natural e que para que ela tome gosto em se cuidar. “A mãe é muito importante para tudo porque é a heroína da criança. Seu incentivo é fundamental”.  

E quando esse incentivo não ocorre, há grandes indícios desse comportamento ter fortes ligações com o preconceito que a população de pele negra sofre diariamente. “Aqui, não há como deixar de remeter à ideia de que o Brasil ainda é um país racista (ainda que este se exprima de forma velada, em alguns casos) e que o preconceito contra o cabelo é apenas a ponta do iceberg do preconceito contra a cultura negra de forma geral”, explica a socióloga, Claudia Sciré.

E é esse preconceito, que passa de geração para geração, pode ser considerado o grande causador do aumento considerável de crianças que tem os seus fios alisados quimicamente. Tathiana Franscino me contou que perdeu uma amiga por conta disso. “Ela alisava o cabelo da filha desde os dois anos de idade, e dizia que a menina quem gostava, mas claro que era sob influência da mãe! Achei aquilo um absurdo. A criança já tinha tão pouco cabelo, imagina daqui 20 anos?”

Manu, que tem dois aninhos e adora seu cabelo crespo, é incentivada pela mãe

Claudia Sciré acredita que mais do que covardia, passar alisante num cabelo infantil é um ato de falta de informação, porque os ingredientes destes produtos são altamente tóxicos e prejudiciais à saúde, e por isso, deveriam ter sua venda controlada, principalmente em salões de cabeleireiros. “Porém, muitas vezes, o alisamento de cabelos infantis acaba sendo realizado em casa, o que dificulta ainda mais a fiscalização e o controle. Ao meu ver, o acesso a estes produtos só deveria ser permitido a profissionais do ramo e deveria haver uma medida que proibisse os salões de realizarem este tipo de procedimento em menores de 18 anos”. 

Agora o que fazer para romper esse círculo vicioso? Segundo a socióloga, uma conscientização maior pode ocorrer nas escolas, através de ações que passem não só pelo ensino de matérias como história (aonde as crianças poderão ter contato com a ideia de que o Brasil é um país miscigenado, a questão da escravidão e o preconceito dos negros etc.), como também através de práticas pedagógicas que ajudem as crianças a aumentarem a autoestima. “É claro que para isso, o corpo docente e o pedagógico também terão que ser reorientados, uma vez que são eles os reprodutores, muitas vezes, destes preconceitos”.

Georgia Pedro: vítima do preconceito de uma professora

Georgia Pedro, blogueira e jornalista sentiu isso na pele: “Quando eu estava na 4ª série, uma professora de outra sala foi verificar o cabelo dos alunos. Aquele procedimento básico, pra ver quem tinha piolho.Isso era normal naquela época. Meu cabelo estava preso, a professora então olhou pra ele muito rapidamente. Para a menina que estava na minha frente, minha colega de cabelo liso, a mesma professora disse a seguinte frase: “Nossa, como é fácil olhar um cabelo desses!”. Pode não parecer nada, mas nunca me esqueço isso.”

Cabelo difícil, cabelo ruim e outras denominações usadas para discriminar os fios crespos são concepções construídas socialmente através de agentes sociais que possuem mais poder, me explicou a autora de Consumo Popular, Fluxos Globais. Para a socióloga, a ideia de cabelo ruim pode ser vista como uma construção de certo grupo social, que para se afirmar perante os demais, acabou conseguindo propagar esta ideia, devido ao poder de suas redes de relações: “poder político e também simbólico”, finaliza.