Personagens bizarros surgem no cenário pós-moderno como pano de fundo para ilustrar o poder devastador da ansiedade crônica e o individualismo sob a humanidade. Vejo nitidamente este reflexo em uma mulher da academia que frequento. É uma senhora com 50 e tantos anos que criou laços afetivos por um aparelho de exercício aeróbico, conhecido como elíptico ( aquele que simula o movimento de um esqui). A academia que treino é de pequeno porte, típica de bairro, e oferece apenas três opções deste aparelho: um velho, que faz barulho de serrote e vive em manutenção; um excessivamente moderno, que as pessoas mal conseguem programar; e o objeto da paixão desta senhora, o anatômico, e por isso mais confortável, também o único que fica no piso térreo. Os outros dois dividem espaço com as esteiras no último andar. Por fim, há tempos observo o amor platônico que esta senhora desenvolveu pelo aparelho. Todo dia que adentra o recinto, já entra com gestos ansiosos e com os olhos esbugalhados no alvo de sua paixão. E ai se tiver outra pessoa usando.

Uma vez eu estava no aparelho justamente nesse momento fatídico. A mulher só faltou me arrancar de lá na unha. Ela nem vai ao vestiário guardar sua bolsa. Joga suas coisas todas ali no chão. Nem dá bom dia. Já vai logo questionando: – Falta muito??? Outro dia, disse que sim, e ela conseguiu a proeza de me estrangular com os olhos, tanto é que nem aguentei o exercício até o fim. Se não tiver ninguém, ela marca o território com uma toalha de rosto antes de guardar os seus pertences. Mas tem dia que não se aguenta, e larga a bolsa e o que tiver carregando ali mesmo. Em seguida, segue gloriosa no exercício. O que me surpreende é que horas no aparelho não deram a ela uma silhueta esguia. Muito pelo contrário, continua cada vez mais gorda. Intuo que talvez não seja este o objetivo. Também imagino que não coloque carga nenhuma no dito cujo, o que o torna tão convidativo quanto um passeio no bosque. Esforço zero. Um professor de lá me contou, que a mulher é podre de rica, tem carro importado e tudo. Ou seja, tem condições financeiras de sobra pra comprar vários aparelhos daquele, inclusive pagar uma academia melhor. Mas acho que a competição a estimula. É como a lógica do ‘cada um por si’ que nos impõe o mundo corporativo. E a mulher expõe os altos e baixos da sua paixão para quem quiser ver dentro daquele cenário fitness. Ficou conhecida no lugar. Todos sabem seu nome. Todos também se divertem com a angústia alheia de cada perda e vitória pelo objeto amado. Se ele preenche as suas lacunas sentimentais, ainda tenho minhas dúvidas. A angústia a consome diariamente. Nunca sabe o dia que ele vai trocá-la por outra, ou por outro. Mesmo assim, não deixa de lutar por ele. Temo apenas quando chegar o dia em que será interditado para manutenção, assim como o outro mais antigo. Creio eu que o coração dela não aguentaria. Ia ser um baque forte demais. Enquanto isso, a coloco no meu acervo de personagens doentios e interessantes. E continuo observando de perto o desenlace dessa paixão, com direito a vingança e roupantes de fúria.

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